domingo, 30 de agosto de 2009


Aos melhores meses da minha vida:


Nada mais será como dantes.
África hei-de voltar!

sábado, 29 de agosto de 2009


Fotos: Orfanato 1º de Maio

A reacção não era a mesma, as feições não eram as mesmas, o olhar estava alterado, o sorriso dava lugar a uma tristeza, os berros típicos de crianças eram substituídos pelo silêncio que nunca reinava aquele orfanato.
Os mais pequenos não se aperceberam o que aquele último "olá" significava, mas os mais crescidos sim. Aquele "olá" seria o último, o derradeiro, a última visita, a última entrega tão próxima, o último sorriso partilhado, o último abraço. Sim, foi o último dia em que pisamos o orfanato 1º de Maio, que sentimos aquele calor a que já estávamos tão, tão habituados.
As horas foram passadas a brincar com os mais pequeninos. Os mais velhos não se aproximaram. Senti exactamente o que senti quando ali pus os pés pela primeira vez: que aquelas crianças não se deixavam tocar, não se aproximavam de nós a não ser pelo toque, não se ligavam, não nos deixavam ir mais além.
O toque foi habitual, os mais pequenos não sabiam que cada sorriso era uma despedida, por isso foram tão desprendidos como o usual, nem nós quereríamos de outra forma.
Via ao longe o olhar da Clarinha, da Florença e do Vicente. Falo-vos especialmente deste três meninos que me marcaram como nunca. O Vicente dava-me abraços leves, rápidos apenas quando lhe pedia, a Clarinha fingia nunca me ver, passando mesmo à minha frente, a Florença mirava-me sempre de longe, numa cara sem expressão.
Chegava a hora, não podíamos prolongar mais, era tudo demasiadamente doloroso. Despedi-me de todos com um beijinho na testa sem que algum deles se apercebesse que o meu aperto no coração aumentava com cada beijinho.
Foi nesse momento. Com o Vicente já abraçado a mim vi a Clarinha correr para os meus braços. Suplicou-me que não a abandonasse, que não me fosse embora, que não a deixasse, fazendo-me promessas de bom comportamente que supostamente me iriam convencer a ficar. Tentei explicar-lhe que não podia ficar da melhor forma que o limite da força que fazia para não chorar conseguia. Agarrada a mim já ao portão batia com os pés como quem faz uma birra e continuava a pedir. Sentou-se em frente do Portão para eu não o conseguir abrir. Não me queria deixar sair daquele sitio, não percebia a minha partida, não entendia que se gostava tanto dela o porque da minha despedida. Choramos as duas juntas com o Vicente ainda agarrado a mim. Nessa altura chega a Florença. Aquela menina que tão raramente esboçava sorrisos, que tão levemente me deixava entrar no mundo dela, que tão dificilmente me olhava de frente começou a chorar sofregamente. Chorou, chorou, chorou. Nunca me custou tanto, ainda agora me arrepio. Nesse momento disse-me:

"_Sabes porque é que nunca falava contigo Ana?"

"_ Não Florença, diz-me."

"_ Porque me vais deixar, porque já sabia que ias embora. Vão todos para casa, eu fico sempre. E fico sempre sem as pessoas que gosto."

Como doeu. Nunca, nunca na minha vida me custou tanto uma atitude minha. Nunca!
"Morri" aos pedaços por dentro, vagarosamente, na meia hora que estive em frente ao portão do orfanato com aquelas 3 crianças. A "morte" é dolorosa, pelo menos a minha naquele momento foi.

Afinal de contas consegui tocar aquelas crianças tão aparentemente intocáveis.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009



Foto: Vicente

Imaginem...
Imaginem um orfanato colorido.
Imaginem o parque infantil onde 500 crianças brincam, se empoleiram nas grades,trepam árvores, correm uns atrás dos outros, gritam, chamam pela atenção dos que os olham.
Imaginem no meio de tanta multidão uma rapariga.
Imaginem uma rapariga sentada no chão, com pernas à chinês.
Imaginem a rapariga que enrolava a criança.
Imaginem uma criança de 3 anos sentada ao seu colo.
Imaginem o bater do sol na sua cara rechonchuda típica de uma criança pequena.
Imaginem que o bebé adormecera no seu colo, encostado ao seu peito com o dedo na boca.
Imaginem este cenário no meio da confusão.
Imaginem que os dois vivam um momento só seu.
Imaginem o olhar triste dessa rapariga.
Imaginem que é um olhar de despedida, de uma despedida forçada, necessária, imposta, que nenhum dos dois podia mudar.
Imaginem a despedida em silêncio.
Imaginem a perfeição do momento.
Imaginem o relembrar de todos os momentos que passaram juntos como flash-backs nas suas cabeças.
Imaginem a lágrima a cair do canto do olho da rapariga.
Imaginem um sentimento vazio.
Imaginem...


Hoje despedi-me do Vicente. Custou-me. Sem ele saber desejei leva-lo comigo para Portugal. O meu Vicente. O meu texuguinho.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009


Foto: As pintarolas

Sentei-me na secretária de aula. Pedi para as minhas 7 pintarolas se juntarem a mim. Hoje faltava o Sipriano. Ainda bem, o meu primeiro confronto com a despedida seria menos doloroso.

"_Meninos a professora tem que falar com vocês sobre uma coisa!"

A rita fez cara de espanto, a Ema de medo, o Igor de desconfiado, o Kevin não moveu a expressão que já tinha, a Brigida continuou com o seu sorriso sempre presente e o Faquir abriu a boca. Senti o coração tremer. Estava rodeada das minhas pintarolas, dos meus meninos. Como gosto daqueles miúdos.

"_Minhas pintarolas vocês já sabiam que a professora ia ter que ir embora não sabiam? - recebi uma resposta afirmativa com a cabeça em conjunto. Os olhares dos seis mudavam, trocavam-se uns com os outros e encontravam-se não sei bem a procura do que - pronto, esse dia vai ser sexta-feira. A professora vai embora sexta-feira. Igor vai lá apontar à cartolina em que dia da semana estamos e quando é sexta-feira."

Acho que nunca vos disse. A "parede das pintarolas"- como lhe chamo- é uma das paredes da sala sombria e com cheiro estranho em que dou aulas. É a parede junto às secretárias onde trabalhamos. Esta minha parede está repleta de cartolinas, de desenhos, de estratégias desesperantes para tentar fazer com que as cores, o abecedário, as palavras, as horas, o calendário fluíssem mais facilmente naquelas cabecinhas. No meio de tanta tralha de parede, existe o calendário. O Igor, apesar de ser o mais alto da turma, é pequenino e só chega ao calendário em cima da cadeira e de bicos de pé. Assim, nesta mesma posição, apontou para segunda-feira e disse:

"_ Estamos aqui. Não é senhora professora?"
"_ Sim muito bem Igor. E quando é sexta-feira?" - respondi eu.
"_ Sexta-feira é aqui!"

Falou antes de apontar. Antes de apontar parou a olhar para a cartolina. Virou-se para mim e disse:

"_ Já?"

Olharam todos para mim à espera de uma resposta que eu mesma não tinha. Sim já, era já.

"_ Mas a professora volta, não volta?" - os olhos de interrogação sugavam-me. Não queria responder que talvez não o iria ver mais. É o mais provável, sim infelizmente é verdade. Não o queria dizer, pensar, reflectir, sentir.

"_ Talvez queridos."

"_ Para o ano?"

"_ Não para o ano vêm novos professores. Não sou eu, nem a professora Joana, nem o professor Elias. Vai ser giro, vão ver. Os outros professores vão ser vossos amigos."

Foi então que o Igor perguntou de rompante como quem arranca rapidamente a cera para não magoar tanto.

"_ A professora não volta... Nunca mais?"

Fiquei calada. Não tive resposta, não tive reacção. Aprendi aqui em África a, por vezes, não ter reacção às coisas. Ficar calada, sem saber o que dizer, o que fazer, o que sentir.

Agarrei-me a eles, sim em plena aula, não queria saber o que a professora iria achar. Estava ali, naquele pedaço de aula que é o meu, que é o meu espaço de cor naquela sala sombria.



"_ Quando for embora eu vou chorar. Vou ter saudades professora" - disse a Ema, afirmaram os outros.


Estas são as minhas pintarolas, o meu orgulho, os meus olhos, os meus berros, a minha pureza, a minha dedicação, o meu suor, a minha luta, a minha vitória!

domingo, 23 de agosto de 2009


Fotos: Ricochó


Contagem decrescente. Dizer assim parece que é algo negativo, algo que esperamos que acabe, algo que ansiamos o seu fim, algo que não marcou pelo lado bom da vida.
Não, nada disso, isso é errado. Quer queiramos quer não entrei esta semana numa contagem decrescente que me custa, que não queria, que não anseio que acabe. UMA SEMANA! Não quero que acabe os melhores dois meses da minha vida. Não o digo com medo, com atrevimento, com dúvidas. Escrevo-o, digo-o, demonstro-o com toda a certeza que os meus 20 anos podem ter.

Entrei neste projecto a dizer: "_Vou receber mais do que vou dar" Como é verdade. Não me ousem dizer: "Ahh... foste tão corajosa. Que nobreza!" Não. Não me voltem a dizer isso. Durante estes dois meses aprendi mais do que em quaisquer dois meses na minha vida. Não me falem deste projecto como se não recebesse nada, como se saísse daqui vazia, como se fosse eu a única e exclusivamente que iria dar sem retorno. Dei, sim é verdade, dei. Dei de mim a um projecto como nunca antes, dei aquelas crianças o limite das minhas forças, dobrei-me em mil para muitas vezes lhes conseguir chegar, com as 13 pessoas que vivem comigo dei o melhor de mim, o meu esforço diário, o apoio mais forte que consegui, as risadas mais puras que vivi, a este povo dei uma nova visão de vida.


Não apenas dei. Recebi. Recebi muito. Com uma casa cheia aprendi a ter calma, a ter respeito, a ter uma serenidade que desconhecia no limite do meu fervilharão tipico de uma jovem de 20 anos, aprendi que ainda existem amigos verdadeiros, aprendi a beleza dos defeitos das outras pessoas, aprendi a comer numa mesa cheia, aprendi a aceitação de ideias contraditórias, com este povo aprendi a felicidade extrema, a facilidade da vida, a superação de tantos problemas, o sorriso genuíno, o lado bom da vida, a pobreza, o verdadeiro choro, o aperto no coração, um lado da vida negro que a minha bolha actimel nunca me deixou ver, a simpatia, a lealdade, a fome, o olhar de medo, com aquelas crianças da escola aprendi a ajuda, aprendi a calma, aprendi a atenção, aprendi a ser compreensiva, aprendi a ter que ser inovadora, aprendi a ultrapassar o que desconhecia, aprendi a errar, aprendi a errar com o apoio daquelas pintarolas que errando eu, nunca me censuraram, sempre me ajudaram, aprendi a felicidade e realização de juntos conseguirmos começar a ler pequeninas palavras, fazer pequeninas contas, aprendi o espírito de união que pode existir entre 7 crianças. Com o Sipriano aprendi a diferença, aprendia a beleza dos gestos simples, aprendi o sorriso puro, recebi o beijo mais intenso da minha vida, aprendi a vitória das pequeninas coisas, aprendi que é possível mudar a vida, o futuro. Com as crianças do orfanato aprendi um lado terrível da vida, aprendi a dureza de quem vive na rejeição, aprendi como é duro ver todos irem para casa e uns a sempre ficarem, aprendi a chegar ao coração de quem inicialmente não nos deixa, aprendi com o Vicente o abraço mais apertado do Mundo, aprendi com o Dudu a responder a perguntas difíceis, aprendi histórias cruéis que marcavam cada criança que ali estava, aprendi a reacção que cada um deles tinha quando receberam o seu primeiro caderno, quando pela primeira vez tiveram uma espécie de escola, o mais próximo de escola que lhes poderíamos dar. Com África, conheci as melhores paisagens de sempre, vive as maiores histórias da minha vida, aprendi a viver sozinha, aprendi a superar a saudade, conheci uma realidade que desconhecia, aprendi uma nova forma de caminhar, de respirar, de viver.



Superei o que achava que não conseguia. Superei, mudei, vivi, alterei e estou feliz. Estou feliz como nunca estive.

sábado, 22 de agosto de 2009


"Já tocaste o limite do Mundo. Sentiste?"





Fotos: (por ordem)
Papito
Maria
Vicente, Florença e Maria
Clarinha
Palmira



Hoje as cores do orfanato estava diferente. Hoje as cores vivas das suas paredes estavam menos cobertas do sombrio que aquele espaço simboliza. Hoje as cores eram garridas, eram alegres, eram vibrantes, eram reais. Hoje foi o nosso almoço de despedida do orfanato 1º de Maio.
Quando lá entravamos a nossa visão ficava repleta de balões de cores variadas, musicas aos berros, crianças que dançavam ora ao som desta, ora em cima das cavalitas dos meninos, ora ao colo das meninas, ora comiam, ou corriam, ou saltavam, ou caiam, ora não sabiam que mais fazer. Hoje aquelas crianças estavam genuinamente felizes, e isso, isso transparecia nos seus olhos. Era uma imaginem bonita, muito bonita.

Hoje depois de almoço metemos as crianças sentadas no refeitório em frente à televisão. Passamos um video com fotografias suas e música. Para nós o gesto mais simples, banal, pacifico. Para eles, turbilhão de sentimentos, euforia, a primeira vez que se viam em grande plano em fotografia, gritos, risos, caras envergonhadas, gritos, e mais risos. Estavam histéricos.


Hoje depois de vir do orfanato caí pesada no sofá da sala. Já me pesa a despedida. Rendi-me à melancolia que o momento pedia. Aquelas crianças durante 2 meses foram o centro da minha vida, como me poderia passar tudo isto ao lado? Queria leva-las a quase todas para casa, já conheço os pormenores de tantos deles, já aprecio com sentimento quase de mãe do abraço do Vicente, já me abaixo para a Palmira correr para os meus braços, já finjo que mordo a bochecha do Papito porque sei que ele adora, já sei como fazer a Maria parar, já sei quem mais gosta de por os meus óculos na cara e imitar-me, já sei quem em olha de frente e adora e quem me olha ainda de lado, já sei lidar com a rebeldia da Clarinha, já sei ver quando a Florença está feliz, já sei. Já sei tanto daquelas crianças, como é que isto nos passa ao lado.

"_ Já sabias desde o inicio que ia ser assim!" - já dizia o meu irmão João.

Sim é verdade. Sempre soube que assim seria, sempre o previ. Mas não sabia o que era isto. Nunca tinha experimentado este sentimento, portanto as minhas suposições não eram mais que isso mesmo: suposições. Doí, magoa, custa, pesa. Mas é bom. É bom sair dali e olhar para aquelas crianças, aqueles meus, nossos meninos.


Nada mais vai ser como antes, África obrigada*

quinta-feira, 20 de agosto de 2009


Foto: God's window - África do Sul

Sem motivo aparente começa a chorar. Estranhei. O Vicente não é criança de chorar. Não era o choro dito como "normal" das crianças do orfanato, era um choro sôfrego, intenso, acelerado, repetitivo em que todas as suas energias eram gastas naquelas lágrimas que não haviam maneira de serem paradas. Tentei perceber o que se passava. Tentei falar com o Vicente. Tentei que me ouvisse. Tentei que me olhasse nos olhos. Tentei que se sentasse comigo para tentar entender aquilo que por momentos me era inatendível. Nada. Absolutamente nada foi a resposta que obtive. O Vicente tinha-se fechado nas suas muralhas e não tinha deixado uma ranhurazinha para eu entrar.

Chegava quase a hora de irmos embora. Já as crianças do orfanato estavam nos baloiços. Nesse momento sinto uma mão pousar na minha cintura. Sim, era o Vicente.

"_ Ana, queres saber porque estava a chorar à pouco?
_ Claro que quero Vicente. Conta lá...
_ É que tu vais-te embora. Vais embora como vão todos embora. Até os meus amigos vão embora."


O trabalho de voluntariado é ingrato. Sim ingrato. Dá-mos a estas crianças um bocado que lhes tiramos depois. O pequeno Vicente estará melhor agora, ou estaria melhor se eu nunca tivesse aparecido na sua vida? Será assim tão justo entrar na sua vida para mais tarde sair sem autorização desta criança? O trabalho de voluntariado é ingrato.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009


Foto: Kevin

A sala de aula começa a ter o cheiro do tempo quente. No espaço temporal de um mês o tempo aquece, as mulheres deixam de usar roupa por cima de roupa, as crianças esquecem os casacos, os gorros começam a desaparecer de vista, o suor aumenta, o cheiro típico de verão começa a pairar, a paisagem humanista altera-se.

A minha entrada na sala de aula é sempre como que uma rotina. Antes de entrar já os alunos estão sentados e começam a desviar o seu olhar quando me começam a ver aproximar e esboçam sorrisos. Os gestos, reacções, falas, olhares são sempre os mesmos. Levantam-se as crianças e exclamam: “Boa tarde Senhora Professora Ana” ao qual respondo “Boa tarde meninos” quase que ao mesmo tempo que miro todas as pequenas caras. Deito fora conversa banal com a senhora professora que com cara de alívio me vê arrastar de si os 8 alunos a quem chama de “burros”.

Hoje a minha entrada de sempre foi diferente. A senhora professora ainda não tinha chegado e à minha entrada obtive não o discurso habitual e decorado mas antes um silêncio insistente, incomodativo e, no mínimo, estranho. Quarenta olhinhos observavam-me com a cara típica de criança que depois de fazer asneira tenta pedir desculpa com o olhar. Olhei pela sala à procura dos vestígios da asneira em que os meus meninos, supostamente, se encontravam. Foi então que sentado a um canto a chorar encontrei o Kevin ainda encoberto pelos corpos dos seus colegas. O choro sôfrego expandia-se, agora, pela sala de aula e o seu nervosismo que se espalhava pelo pequeno corpo do Kevin foi o impedimento para que o conseguisse acalmar. Sem saber muito bem como reagir, agindo impulsivamente pelo meu sangue frio, puxei cuidadosamente pelo seu bracinho e levei-o para o pátio da escola. Ali, sentados debaixo da árvore centenária que nos dava sombra consegui finalmente acalmar o Kevin com um abraço. Já recuperada a normal respiração, com toda a calma, tentei entender o que se tinha passado.

Teria o Kevin perdido o lápis? Teriam batido a um dos meus meninos? Teriam tirado a sua pasta? Estaria doente? Magoado? – em segundos passaram pela minha cabeça imensas hipóteses para aquele choro estranho e inesperado. No entanto, apesar de uma pré-preparação de hipóteses cada uma pior que ela, atitude típica de mãe, ainda não estava preparada para ouvir a verdadeira razão daquele choro. Arrepiando-me, contorcendo-me toda, ficando com o olhar gelado, sem querer acreditar ouvi então a explicação do Kevin:

“_ Ainda não comi nada hoje senhora professora. Não havia comida em casa.”

quinta-feira, 13 de agosto de 2009






Fotos: Pós prova de Português (as minhas pintarolas)

Hoje pela primeira vez olharam para mim com olhos de medo. Não sei se era um medo genuíno ou se era eu que lhe fazia sentir isso com aquela minha expressão de pânico. Era um dia importante, importante para mim, importante para eles. Sem saberem estava eu naquela sala sem saber qual de nós ia ser mais posto à prova: se os meus alunos se eu.
Hoje foi dia de prova de Português. Ao contrário do que esperava a sala não tinha um ambiente pesado, os nervos dos alunos não se cheirava, as gotas de suor não eram visíveis. Digo, tirando os meus 8 alunos aquela sala não parecia uma sala de prova. Talvez tivesse pegado os nervos aos meus alunos, talvez o friozinho que começava a sentir se tivesse pegado. Não sei se me sentia eu mais avaliada ou eles,.. Se era verdade que os seus conhecimentos das letras ia ser posto à prova,a verdade é que a minha tentativa sem experiência alguma de ser professora ia igualmente ser posta à prova. Se obtivesse más notas sairia daquela sala meia derrotada se conseguisse ter boas notas estava encaminhada para o meu objectivo final.
Com caras de sérios recebiam o exame na mão como que pequenos adultos a receber um trabalho importantíssimo e com os pequenos e gastos lápis que poucos tem começavam a resolver o exame que não sendo difícil iria ser um desafio para cada um deles. Sentados cada um em secretários sozinhos começavam a escrever devagarinho, primeiro a medo, depois já com a convicção de quem sabe o que faz e que está confiante de que sairá dali com bons resultados.
A entrega daquele pedaço de papel que tanto embaraço criou foi um alivio para todos. As crianças já sorriam, já brincavam, falavam alto, já me tentavam chamar a atenção, já eram de novo "as minhas pintarolas".

Surpresa das surpresa. Só tive apenas uma negativa. A alegria começou a apoderar de mim aos poucos. O meu objectivo não está assim tão longe. A concretização está mais perto.

terça-feira, 11 de agosto de 2009




Foto: Lixeira de Hulene

A resignação às vezes é quase como que uma revolta.

Ali o dia é noite.
Ali o bicho anda À solta.
Ali a paisagem é uma linha de terra que corta os montes que são feitos de lixo.
Ali impera o cheiro nauseabundo.
Ali o nada é rei.
Ali as crianças brincam com as latas utilizadas.
Ali crianças de 10 anos usam máscaras.
Ali existem casas coladas ao infinito do lixo.
Ali o mar de lixo não tem horizonte, não acaba.
Ali é vivida a maior lixeira de Maputo.
Ali o Mundo parou.
Ali a justiça derrubou.
Ali a pobreza tomou lugar de todos os cantos.
Ali nada existe a não ser as pilhas de papel, de latas, de lixo.
Ali a civilização perdeu o sentido.
Ali estão pessoas esquecidas.
Ali tudo está perdido.
Ali nada se ganha.
Ali o amanhã não será diferente do ontem e do hoje.
Ali o avanço perdeu o sentido.
Ali o futuro é inalterável.
Ali as cores cinzentas das pilhas de lixo abundam.
Ali as pessoas procuram comida no lixo.
Ali só resta a defesa da dignidade que lhes resta.
Ali as crianças não são crianças.
Ali a saúde não tem importância.
Ali só se vê as sombras das pessoas que esgaravatam no meio do lixo.
Ali as crianças comem o pedaço de maça que encontram no meio de um lixo doméstico.
Ali o amanhã está perdido.
Ali as palavras mais duras que posso usar não chegarão nunca para descrever o que se vê, sente, cheira na Lixeira de Hulene


"(...) não é real somente a realidade que conhecemos, mas também a de que necessitamos" (Eduardo Galeano)

Foto: 2º classe da Escola Maxaquene Khovo (a minha turma)

Sozinhos, às vezes somos pequenos, as nossas passadas são curtas, o nosso fôlego não é suficiente, a nossa energia esgota-se. Juntos não. Juntos às vezes somos maiores que os obstáculos, somos mais altos do que os muros, somos mais fortes, somos um passo gigante que alcança e ultrapassa os nossos próprios problemas.
Eu e o Sipriano juntos conseguimos mais do que sozinha eu conseguiria ou mesmo ele sozinho o conseguiria. Vejam, se o Sipriano não me desse constantemente força para continuar a lutar por ele, com ele, não o faria. Se ele não avançasse como avança talvez não tivesse eu força suficiente para tentar como tento.
Hoje o Sipriano contou até 10. Sim aquele menino que quando entrei dentro da sala de aula no 1º dia se sentava na última carteira do canto, sozinho a fazer bolinhas, já conta até 10.

Fechem os olhos e imaginem o cenário que vos dou da aula de hoje.
Após tanto batalhar o 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10 com o Sipriano auxiliando com as canetas de cor, o Sipriano hoje conseguiu contar até 10. Quando sozinho o fez não quis acreditar. Nem eu, nem os restantes meninos que estão comigo. A cara de surpresa especado nas suas caras foi a prova disso. Como aprenderam aqueles miúdos a adorar o Sipriano. Essa foi uma das pequenas vitórias que tive naquela sala de aula e que mais gozo me deu em atingir. Quando lá entrei pela primeira vez o Sipriano por razões que saltavam logo a vista como a cor e pela própria doença era um menino discriminado. Aqui, na terra onde não deveria imperar a discriminação, a forma como tratavam aquele menino e como tratam todos os que lhes são diferentes sempre mexeu bastante comigo. A forma como hoje estas crianças estão mudadas pelo menos em relação ao Sipriano é notável. Sinto-me concretizada só por isso. Hoje o Sipriano é adorado naquele meio, hoje uma vitória do Sipriano é uma vitória do grupo e isso, isso é bom de se sentir. Talvez por ter conseguido atingir este ponto de partilha entre os meus 7 meninos hoje quando o Sipriano contou até 10 todos os restantes que olhavam atentamente para a sua cara branca à espera que conseguisse dizer os números na ordem correcta, bateram palmas.

O Sipriano parou, estagnou, ficou sem reacção. Provavelmente foi a primeira vez que ouviu palmas de mérito para ele mesmo. Encheu-me de orgulho. Acredito que até a vocês encheu. É delicioso ter estes momentos com estas crianças.

Enquanto o barulho das palmas ainda ecoava na sala sussurrei ao seu ouvido: _" Vês Sipriano, tu consegues. Tu consegues". A forma como olhou para mim e repetiu 3 vezes "_Eu consigo" valeu mais do que qualquer palavra que use agora. São momentos em que as próprias palavras não são suficientes para descrever.


Existem momentos em que as palavras nos falham.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009



O meu orgulho: O Sipriano conta até 5!

Foto: Yuren

Às vezes, aqui, neste meio onde a minha vida paira, sinto-me uma coleccionadora de histórias. Aqui, neste país onde tudo é possível encontro todos os dias histórias novas. Umas boas, outras más, umas impressionantes, outras arrepiantes, umas felizmente, outras infelizmente e ainda outras que são um misto da felicidade e da infelicidade.

Com uns olhos que enchem o mundo, com um riso, no mínimo contagiante, de uma esperteza soberba, de um tacto impressinante para uma criança de 2 anos, de um desenrasco digno de um órfão do orfanato 1º de Maio, de um abraço pequenino, de um "Joana" constante, de uma adoração impossível de não sentir, apresento-vos hoje o Yuren.

O Yuren é uma pequena criança que se encontra entre tantas outras no orfanato 1º de Maio. Apesar da multidão que o rodeia, este pequeno sempre se destaca. Pela sorriso, pela simpatia, pela brincadeira, pela simplicidade, pelo andar tonteante, pela pessoa que aos 2 anos já é.
O Yuren chegou ao orfanato 1º de Maio poucos dias depois de nascer. A sua mãe abandonara-o no caixote de lixo. Ao contrário do que inicialmente achávamos a mãe do Yuren não era mais uma moçambicana que no meio de tantas outras provinha de uma família pobre que não podia sustentar mais uma criança. Não. Estamos a falar de uma mãe que, tendo posses e possibilidade de sustentar uma criança, não o quis. Estamos a falar de uma mulher formada que largou um filho dentro do caixote de lixo deixando-o ao sabor da, mais provável, morte, estamos a falar de um abandono bruto, doloroso, monstruoso.
Encontraram o Yuren ainda com vida. Mais, conseguiram descobrir a mãe do Yuren e coloca-la na prisão durante uns tempos. Não me perguntem quanto tempo foi, não vos sei dizer. Mas deveria ter ficado lá. Quem pode quantificar numa pena de prisão um gesto tão bárbaro como este?

O Yuren acaba por entrar no Orfanato 1º de Maio ainda com os seus dias, semanas talvez, não mais. Durante os quase 3 anos que ali esteve a vida desta criança tem parecido um objecto. Falar assim da vida de uma criança é assustador, mas a forma como a vida do Yuren naquele orfanato se tornou uma peça de um jogo de damas é surreal.
Comecemos pela altura em que a mãe do Yuren sai da prisão e tenta encontrar o filho (será que ainda devo chamar o pequeno Yuren filho desta pessoa monstruosa?)para o matar. Sim leste bem. MATAR! Ainda não contente por tudo o que já fizera, deitara a culpa da sua entrada na prisão em cima daquela frágil criança que nunca pediu para nascer, muito menos para entrar neste jogo terrível em que se tornou o seu passado.

O Yuren passou de uma peça no jogo da sua mãe para passar a uma peça no jogo do próprio orfanato em que se encontra ainda hoje. Sim, o Yuren tornou-se a criança mais "chamativa" do Orfanato. Serei muito bruta a por as coisas nestes termos? A pureza e o brilho nos olhos daquela pequena criança não passam despercebidos a ninguém, todas as pessoas que ali entram rendem-se ao seu jeito tão típico. Vejam, falando bruto e grosso, esta criança era fundamental para o Orfanato.
Estou a ser clara? Talvez não. Existe apenas uma conta para o orfanato inteiro. A verdade é que o Yuren conseguiu inúmeros "padrinhos" durante os seus 3 anos dentro daquelas paredes e a verdade é que o pobre Yuren nunca verá aquele dinheiro. Nunca verá porque já não lá se encontra. Nem em conta alguma, nem em sitio algum que se saiba. A vida desta criança tornou-se um ponto fulcral no financiamento deste orfanato. Espera. Estamos a falar de uma criança. Ainda te lembras? Uma criança que é tratada quase como que uma atracção de circo. É tão triste.

Sente aquilo que te digo. Estou a dizer-te que o próprio orfanato não deixava que se adoptasse o Yuren simplesmente porque ele era "bastante produtivo". Sim, pessoas destas existem no nosso Mundo.

Hoje o Yuren vai ser adoptado. Um casal, que segundo percebi são pessoas extraordinárias, foram contra tudo e todos e vão adoptar o Yuren e mais 3 crianças do Orfanato 1º de Maio. O Mundo precisava de mais pessoas a lutar assim por aquilo em que acreditam, e este casal é a prova disso.


Ainda existe alguma justiça neste Mundo, por muito pouca que seja, ainda existe.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009


Foto: Brigida

Hoje, África não teve um bonito por-de-sol.
Hoje, não senti a beleza da cidade.
Hoje, não me senti encaixada.
Hoje, senti a revolta.
Hoje, senti uma revolta tão grande.
Hoje, o dia não fez sentido.

África é intensa. Não me canso de o dizer. A vida tem outro ritmo, a caminhada outro passo, o respirar outra velocidade. A intensidade aqui cheira-se, apalpa-se, vê-se, ouve-me, sente-se.
Hoje a intensidade que amo em África trocou-me as voltas, apanhou-me desprevenida e atingiu-me com toda a força.

De face redonda, com umas bochechas acentuadas, olhos meio em bico, trancinhas no cabelo, o riso sempre estampado na cara, as mãos pequeninas, o olhar sempre preso e distraído com alguma coisa, a Brigida senta-se sempre na 2 carteira de frente. A Brigida é uma das minhas alunas da Escola Maxaquene Khovo. Hoje, sentada na carteira de aula dela, senti o horror na minha cara. Acho que foi das primeiras vezes que o senti. O horror é frio, deixa-nos apáticos, provoca suores frios, e deixa-nos sem conseguir pensar.

_ Brigida quem era aquele senhor que na sexta entrou na nossa sala?
_ Era o porteiro senhora professora.
_ Porteiro? A Ema estava a dizer que ele era teu namorado. É verdade?
_ É! Ele diz que ele é meu namorado. (Sim, o horror começou aqui a apoderar-se de mim. Saber que um homem de 40 e tal anos porteiro de uma escola primária andava a dizer que era namorado de uma menina frágil de 7 anos horrorizou-me)
_ Oh Brigida mas ele não é muito velho para ti? Não gostas mais dos meninos das outras salas?
_ Ele é que diz que é meu namorado!
_ Mas costumas falar com ele?
_ Sim. No final da aula ele fala comigo.
_ Mas ele já te fez alguma coisa?
_ Não professora. Ele quer acompanhar-me a casa agora porque está de noite. - aqui, admito, não sei distinguir se foi horror, se foi pânico, se o que foi. Apenas vos digo, é um sentimento horrível.
_ Mas tu vais sozinha?
_ Não. Vou com o meu irmão. Mas ele disse que me quer levar sozinha, que não é preciso o meu irmão levar-me a casa, que ele leva.

Saber que aquele homem que me passou durante um mês totalmente despercebido andava a tratar a minha pequena, com cara de boneca e frágil Brigida por "pita pequena" e que andava a ter estas atitudes de monstro horrorizou-me. Percebi a cara estranha que ele fez à Brigida na sexta passada na sala de aula, aquela cara que me arrepiou. Era uma cara quase que de desejo. Desejo por uma miúda de 7 anos. De 7 anos, uma criança, uma criança que não sabe distinguir estas mostroozidades de uma brincadeira, de uma ingenuidade. Uma criança. A minha Brigida.
Sinto-me perdida, sinto-me sem o meu norte, sinto-me abatida, sinto-me sem armas. Como me passa tanta coisa ao lado nesta terra de ninguém?


Quando em inscrevi no Pumap achava-me uma pessoa forte, uma pessoa forte o suficiente para aguentar muita coisa que se passava neste outro Mundo tão diferente e tão igual ao meu. Estava tão enganada. Encontro aqui situações com as quais não sei lidar, não sei agir, às quais não sei responder. Deitam-me pelo chão, revoltam-me, tiram-me a força. A intensidade de África é boa e má. Hoje, hoje foi má. Hoje sinto-me sem forças. Hoje não sinto, simplesmente, mais nada a não ser revolta.


Hoje não sou nada. Hoje sou apenas mais uma nesta multidão.