sexta-feira, 31 de julho de 2009

Escola Primária Maxaquene Khovo






Foto: Escola Primária Maxaquene Khovo


Pela primeira vocês vão conseguir ver a minha realidade. Pelo menos sem ser pela descrição das minhas palavras. Poderão ver com os vossos próprios olhos. Vejam. Estes são os meus meninos, olhem bem os sorrisos, olhem bem o Sipriano. Conseguem perceber o que vos dizia? Conseguem entender o que escrevia? Olhando para eles quem não vê pureza? Quem não inspira simplicidade? Quem não detecta o seu genuíno sorriso? Quem?

A sensação de que estamos no Mundo com algum objectivo, com algum propósito, a sensação de estarmos vivos, de conseguirmos atingir objectivos, de lutar pelo que nos é tão próximo e distante ao mesmo tempo, a sensação de conseguir atingir com as nossas atitudes mais do que nós mesmos, atingir outras pessoas. Esta, garanto-vos, é a melhor sensação do Mundo. Nunca me tinha sentido tão viva e tão prestável como me sinto hoje, como me senti no último mês.

Hoje ensinei o Sipriano a contar até 5. Entendem o que isso é? Estou a conseguir dar algum estimulo a uma criança que no primeiro dia em que a vi era uma criança perdida naquela sala de aula escura com um cheiro estranho. Ele contou até 5 sozinho! Conseguem entender o efeito que isto teve em mim? Não sei se o Sipriano o disse de forma meramente repetitiva, sem perceber o conteúdo das palavras que prenunciava, mas mesmo assim, isso implica uma evolução, um avanço e isso deixa-me mais feliz do que tudo. Sinto-me de uma felicidade extrema. Gritei na aula quando ele contou sozinho com a ajuda dos meus dedos até 5. Acho que ninguém entendeu o festejo da minha pequena vitória e da vitória tão grande do Sipriano. O próprio Sipriano esboçou um grande sorriso, mas talvez não tenha entendido o porquê da nossa alegria. A questão é que partilhamos, por momentos, a mesma vitória, a mesma felicidade, o mesmo objectivo, a concretização do mesmo sonho. A questão é que por momentos naquela sala só nós os dois entendemos o que aquele "1,2,3,4,5" quis dizer, a questão é que fomos cúmplices de uma das maiores felicidades que já senti.


Não vou parar. Nunca irei parar.

Foto: Crianças que encontrei na rua na manhã de visita ao Mercado do Pau Preto


Pairo no ar. Parece que o tempo pára para mim. Paro, penso, reflicto. Vejam isto tem-me acontecido várias vezes. Nunca fui pessoa de reflectir muito sobre a minha vida. Sempre fui uma pessoa que vivi o momento, que toma decisões no momento, que reage de cabeça quente, que é impulsiva. Nunca fui de reflectir muito depois de agir, de pensar se agi bem ou mal. Ou melhor sim reflectia, mas no limite achava que não agiria muito bem. Nunca aprofundara muito a minha vida neste sentido.

África muda-nos. Se vos disser que já parei para pensar na minha vida imensas vezes as pessoas que me conhecem provavelmente dirão que não pode ser. É verdade. Vemos tanto à nossa volta que o sentimento de pequenez é inevitável de sentir.

Talvez esteja a ser confusa. Deixem-me ser clara. A forma como a minha vida era o centro da minha atenção aí, aí onde ainda pertenço (talvez não tanto como quando vim embora), e a forma como vejo a minha vida agora mudou. Acreditam que num mês a nossa visão da vida pode mudar? Acreditam que posso ver hoje com outros olhos?

Entendam... Os meus problemas num Mundo como África são uma pequena gota de água num oceano. No meio desta multidão, os meus supostos grandes problemas são meros problemazinhos. São ridiculamente pequenos.

Acreditem... África é como uma balança, a melhor balança de sempre. África ensina-nos a pesar os factos tal como eles são, África mostra-nos como se separa o que tem realmente importância e o que não tem, África deixa-me ver a realidade que tantas vezes me tentam ocultar. Garanto-vos. Nunca me achei tão ridícula por momentos que passei como me sinto quando aqui reflicto sobre o meu ultimo ano.

Este último ano passou-me na cabeça como um filme. Nestes últimos tempos tenho sido expectadora do meu último ano, do meu próprio filme. Nestas últimas semanas tenho-me criticado como nunca o tinha feito. Nestes últimos dias tenho tentado mudar como nunca o tinha tentado. Nestas últimas horas (já de semanas) tenho mudado sem me aperceber.




África ensina-me a encontrar o equilíbrio.

quinta-feira, 30 de julho de 2009


Mãos calosas, pele escura, olhos cansados da vida, rosto de quem já nada espera do amanhã, braços de quem já da vida teve o pior, voz de sabedoria, passos de simplicidade, a serenidade que só uma pessoa vivida tem, gestos de fidelidade, o sentar rotineiro, o sorriso constante, a força que custa a ganhar, o "Bom dia" sempre matinal.

Apresento-vos o Senhor Filipe, o nosso porteiro.
Nunca ninguém percebeu a vida do senhor Filipe. é impressionante como nos cruzamos todos os dias com certas pessoas que nunca parámos para perguntar, para falar mais, para tentar ir além da simpatia, talvez, superficial, para tentar entrar na vida dessa pessoa. Quem me dera ter percebido a vida do Senhor Filipe mais cedo. Numa terra onde impera a lei do mais forte o Senhor Filipe é um perdedor, ou melhor na minha perspectiva um vencedor, um grande vencedor que merece qualquer mérito que lhe possa dar.

Deixem-me explicar-vos melhor. Imaginem um senhor pequenino, magrinho, que sentado à porta da vossa casa numa cadeirinha de plástico todos os dias vos abre a porta de casa, vos dá um "Bom dia" caloroso, sorridente e delicioso num inicio de dia. Conseguem? A conversa que tinha tido com o senhor Filipe não passara disto e da conversa sobre o tempo. Como fui capaz de passar ao lado desta realidade que me era tão próxima e, no entanto, tão paralela?

A forma como vejo o Senhor Filipe mudou na semana passada. Descobrimos que a dona da casa a quem alugamos, não lhe pagava o ordenado fazia 3 meses. Não estão a entender... Num país em que o nível de vida, os preços são idênticos aos nossos em Portugal a verdade é que o Senhor Filipe ganhava 60 euros. Sim só recebia este ordenado e mesmo assim não recebia fazia 3 meses. A revolta em mim às vezes nesta cidade começa a vir ao de cima. É demasiada injustiça tantas vezes.

Ouçam-me. Quem me dera já ter acabado esta triste e forte história. Mas não. O senhor Filipe tinha sido despejado de casa, não tinha como pagar, vivia com um filho, mas dormia a maioria das vezes na entrada da nossa casa. Conseguem imaginar esta realidade? O Senhor Filipe não comia fazia tempos. Não, não devem conseguir imaginar. Eu estou aqui ao lado e não consigo imaginar a vida desesperante deste, hoje, meu herói. Nunca, nunca nos disse nada, nunca nos pediu um pedaço de carne, nunca nos pediu dinheiro, nunca nos negou o sorriso matinal, nunca recusou a conversa do tempo tantas vezes chata, nunca entrou em casa quando a porta está aberta. Nunca, e morria lá fora enquanto com a luz de casa ligada e a fartura a reinar nunca nos apercebemos desta triste e revoltante realidade.


A revolta toma conta da minha forma de ver o Mundo às vezes.
Digam-me, se o Senhor Filipe não é um vencedor neste Mundo então o que é?



"Não sou nada,
Não fui nada,
Não serei nada,
Mas tenho em mim todos os sonhos do mundo"

Álvaro de campos

terça-feira, 28 de julho de 2009


http://picasaweb.google.com.br/anavasconcelosluis/1Semana#
Link dos álbuns de fotografias.

Foto: Museu Natural de Maputo

Hoje já é o segundo post. Passo muito tempo sem escrever, aqui a net não é fácil, por isso quando tenho tempo tem que ser. Vou contar-vos mais uma história.
Estava no orfanato. Senti o meu telemóvel a vibrar. Eram os meus pais. Pela primeira vez atendi o telemóvel no orfanato e em frente às crianças. Bem... Foi um delírio. Encostei o telemóvel às carinhas deles enquanto os meus pais falavam e a reacção que tinham ao ouvir voz do outro lado daquela engenhoca estranha que é o telemóvel era uma imagem deliciosa. os "_ Allo" deles eram encantadores. Foi um bom momento.
Foi aí que chegou o Dudu. Também já conhecem o Dudu. O Dudu chegou e ao perceber que estava ao telemovel e que os outros meninos também estavam a falar também quis. Emprestei-lhe o telemovel e ouviu um barulho do outro lado. Falou pouco, ficou muito tempo parado calado com ar pensativo. Quando desliguei, passado uns momentos o Dudu aproximou-se de mim:
"_Como posso ligar para a minha mãe?"
Foi como um baque no meu coração. A mãe do Dudu morreu e o pai dele batia-lhe daí que lhe foi tirado. Como ia explicar ao Dudu que não podia ligar à mãe dele?

"_Dudu, sabes que não podes querido. Onde a tua mamã está não existe telefone." - que mais lhe poderia dizer?

O Dudu ficou calado por momento. Fez um ar de revoltado.

"_ Mas isso é injusto. Se tu podes falar com a tua mãe eu também devia poder falar com a minha. Não achas?"

Claro que achava. Aquela criança merece tudo. O "Dudu perguntas difíceis" como já lhe chamo, surpreende-me todos os dias.

segunda-feira, 27 de julho de 2009






(Fotos: Mercado do Pau Preto- Maputo. 25.07.09)


Hoje o meu coração transborda.
Deixem-me cantar-vos o meu coração cheio.

Estava sentada naquela secretária de madeira gasta com cheiro estranho e visivelmente pequena para mim. Estava sentada com o Sipriano ao meu lado. Fiquei a auxiliar os sete alunos com mais dificuldade da turma do 2º ano b, e enquanto os restantes " meus texugos"- como carinhosamente lhes chamo- faziam a ficha de matemática que tinha elaborado, eu e o sipriano entendia-mo-nos como só nós nos entendemos. Era um entendimento simples, básico mas delicioso. Estávamos a pintar o bloco de desenhos que eu arranjei para o Sipriano e pintávamos o sol, o céu, as árvores e todo o nosso Mundo. O sipriano passava-me o lápis e com a sua cara branca de tanta pureza encostada ao meu braço via-me pintar. O sipriano não consegue pintar, digo-vos. Limita-se às bolinhas. Nunca lhe consegui motivar para mais até hoje.
Ouvi um chamamento na sala. Eram os outros meninos que tinham acabado a ficha e já começavam:

_Senhora Professora vem corrigir. - São crianças amorosas.

Segui o chamamento e fui corrigir a ficha de matemática. Estava eu entretida já com novos jogos didácticos quando olho de repente para o Sipriano e este estava muito concentrado. Estranhei. O Sipriano raramente está muito concentrado. Normalmente está a olhar para todo o lado e para lado nenhum ao mesmo tempo. Decidi perceber o que se passava. Quando cheguei ao lugar do Sipriano, não vos consigo dizer o que senti, só vos consigo dizer que é uma sensação maravilhosa. O Sipriano estava no seu lugar quietinho a pintar. tinha-me observado durante minutos com a cara enterrada no meu braço e agora tinha trocado as suas tipicas bolinhas por risquinhos desordenados, confusos, tipicos de uma criança que começa a pintar.

Tinha ensinado o Sipriano a pintar. Não vos consigo explicar o que ainda sinto, mas sinto-me cheia, totalmente cheia.

No fim da aula, com a sua mãozinha pequena o Sipriano entregou-me o desenho enquanto dizia:

_Pintar.



É uma sensação extraordinária. Estou a mudar o mundo. Neste momento o meu e o do Sipriano pelo menos. Já é um começo.

quarta-feira, 22 de julho de 2009






Fecha os olhos.
Fechas-te?
Pára no tempo.
Deixa de pensar.
Deixas-te?
Agora deixa de sentir.
Conseguiste?

Pensa que és uma massa invisível que apenas observa.
Estas a tentar?

Agora imagina...
Imagina a pureza.
Imagina o verde das vegetações.
Imagina o azulão do mar.
Imagina a terra vermelha e quente.
Imagina O sorriso mais puro de sempre.
Imagina a simplicidade.
Imagina magnitude no nada.
Imagina a genuína felicidade.
Imagina ruas degradadas mas encantadoras.
Imagina multidões.
Imagina a agitação.
Imagina risos.
Imagina extremos.
Imagina desigualdades.
Imagina injustiças.
Imagina viver sem nada.
Imagina ser despejado de casa.
Imagina viver com pessoas a porta a morrer de fome.
Imagina crianças que nada têm.
Imagina que mesmo assim são crianças realmente felizes.
Imagina um sitio onde encontras tudo.
Imagina a agitação da madrugada.
Imagina a calma e serenidade do fim do dia.
Imagina a confusão típica das cidades e ao mesmo tempo o tempo parado das "palhotas".
Imagina os confrontos.
Imagina o cheiro da terra molhada.
Imagina buracos nas ruas.
Imagina edifícios degradados.
Imagina a luta do dia-a-dia.
Imagina onde só comer nesse dia interessa.
Imagina as mãos dadas.
Imagina uma mãe na rua abraçada ao seu filho sem comer.
Imagina o desespero.
Imagina a sofreguidão.
Imagina um tacho de arroz para 30 pessoas.
Imagina a lei do mais forte.
Imagina a paixão por uma terra.
Imagina querer sugar tanto de um povo.
Imagina aprender todos os dias com estas pessoas.
Imagina o distinto de ti.



Consegues?
Amigo, isto é África.

Estou a atingir o meu ponto de equilíbrio.

terça-feira, 21 de julho de 2009





"Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora."


Álvaro de Campos

Orfanato 1º de Maio




Em Portugal existe lua? - Dudu 20.07.09

Vê, estas são as crianças do Orfanato 1º de Maio.
São crianças, como as vezes não as consigo ver como crianças.
Vê, são crianças que já sofreram imenso, são crianças que foram maltratadas, violadas, tiradas aos pais, que lhes tiraram os pais, que não tiveram família, que se a tiveram já não a têm.
Vê, são crianças do mais puro que há, crianças que já sofreram mais do que eu, são crianças que já aguentaram mais do que eu mesma talvez aguentaria.
As vezes não sei como é que sou eu que lhe ensino alguma coisa, como é que sou eu que ali sou o exemplo, como sou eu que sou algo para sugar. Sugo mais do que talvez dê. Aprendo todos os dias com eles. A simplicidade, a genuidade, a força. São crianças incríveis.


Vê, talvez não me esteja a fazer entender. São crianças de olhares cheios e vazios ao mesmo tempo. São crianças que querem tudo de ti e ao mesmo tempo não querem nada. São crianças que não esperam nada da vida.

Escuta, ouves o que te digo? Digo-te que são crianças que não esperam nada da vida. Como é isto possível? São crianças. As crianças brincam, as crianças querem crescer depressa para viver tudo, as crianças recebem amor, as crianças querem tudo de todos, as crianças vivem intensamente o dia-a-dia. Ali não. Ali os dias são iguais. Ali as pessoas que entram naquelas salas são vistas como apenas uma passagem nas suas vidas. Uma passagem que talvez intensa, mas não mais o que isso. São crianças que não se querem prender, que só querem tocar, que só querem cantar uma música connosco. São crianças que não nos deixam chegar ao seu fundo. Quanto fundo será o seu fundo?

Haverá algo mais terrível do que ver um olhar vazio de uma crianças? Do que uma criança não acreditar no amanhã? Do que a vivência apática de cada dia? Escuta, são crianças. São crianças africanas, fortes, amáveis, sempre sorridentes, com o seu mundo. O seu mundo... Como queria chegar ao seu mundo.


O mundo destas crianças está neste momento a tocar o meu mundo. É um calor bom.

sexta-feira, 17 de julho de 2009





Maputo nao nos mostra, talvez, o lado mais belo do Mundo. Maputo mostra-nos com as suas ruas degradadas, com os pes descalcos, com a rabenta, com a sorriso sempre habitual, com o seu hino, a fotografia completa do nosso mundo.
A visao de maputo complementa a minha ideia ainda tao pequena do mundo. Hoje vejo a fotografia mais de longe.


No fim de semana fomos a Belene. belene e certamente das praias mais lindas que ja fui ate hoje. naquele lugar, naquele mundo, naquela calma, naqueles passos, nao e preciso muito para ser feliz. A felecidade e simples, basica e saborosa. Complicamos tanto...
De facto ali qualquer pessoa e feliz. naquela praia deserta em que vimos baleias e tartarugas a felicidade e um bem fundamental que todos alcancam com uma facilidade inexplicavel. A bem ver, todos ali sao felizes com tao pouco. E isto que eu nao sei, nem muitos de nos sabemos. Ser feliz com pouco.
A nossa vida e uma constante queixa, e uma constante incerteza, e um constante querer sempre mais. Ali não. O mundo ali para. Ali ninguem quer mais do que ninguem. Ali cada um tem o que tem e todos sao felizes de forma tao distinta e tao especial. Ali o banho ao final do dia na praia e um motivo para se ser feliz. Ali tudo tem um sabor mais intenso.

Comeco a conhecer e a saber caminhar nesta felicidade simples e isso sabe bem.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Orfanato 1º de Maio





Considero-me uma pessoa forte.
Hoje foi o meu primeiro profundo impacto com estas crianças.

Considero-me uma pessoa forte. Hoje não o fui. Ou simplesmente todo aquele ambiente é demasiadamente pesado para qualquer um. As crianças africanas são das maiores doçuras que já conheci. Não sei como vos explicar o que senti hoje.

Mal cheguei ao Orfanato uma das crianças sentou-se mais a trás. Era o Dudu, o matulão do grupo, alto, gordinho, que me olhava com desconfiança.
As crianças aqui adoram os nossos cabelos, são extremamente diferentes dos deles e por isso, mal chegamos ao orfanato temos umas 500 crianças atirados aos nossos cabelos. Por essa mesma razão, eu que levava o cabelo preso, soltei-o e deixei-os mexer à vontade no meu cabelo. Passado meia hora, quando lá se fartaram, voltei a apanhar o cabelo, só que desta vez, fiz uma trança ao lado. Foi nesse momento. O Dudu arregalou imenso os olhos, ficou fixo a tirar-me os traços faciais e encaminhou-se para mim. Foi então que me colocou as mãos na cara e me começou a apalpar a cara com as suas pequeninas, gordinhas e delicadas mãos. Parecia que estava preocupado em descobrir se eu era, de facto, real. Nesse momento, quase a chorar disse-me:

"Pareces a minha mãe. Fazes lembrar-me a minha mãe. A minha mãe ponha assim o cabelo. Sabes, a minha mãe morreu quando eu tinha 6 anos e tu és mesmo parecida com ela".

Abraçou-me. Não vos sei dizer onde fui buscar força para me controlar. Só me apeteceu chorar naquele momento.

Considero-me uma pessoa forte. Ou considerava-me, não sei bem. Sei que o dia de hoje tornou-se num turbilhão de sentimentos, foram demasiadas sensações, experiências. Foi duro. Mas é impressionante, é impressionante como estas crianças sem futuro que conheci hoje são realmente crianças felizes, são crianças que sorriem genuinamente, são crianças que só precisam de um toque e carinho.


Considero-me uma pessoa forte.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Não sei se tenho a alma cheia ou não.

Entrei na sala de aula.
Havia uma junção de crianças que rodeavam uma menina pequenina de cabelo às trancinhas presas com peças coloridas.
Esta tentava repartir um pedaço grande de borracha por mais dez crianças.
Levando a borracha à boca mordia-a e cortava-a em pedacinhos.
De uma borracha fez-se, de um momento para o outro, dez borrachinhas.
Cada uma das crianças ficava com uma bolinha pequenina de borracha na mão e pulavam por já conseguir apagar os erros que davam, para a senhora professora não lhes bater.
Senti que me tinha sido tirado o chão.



Não sei se tenho a alma cheia ou não. Mas sei que, neste momento, é aqui o meu lugar.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Sipriano

A noite de África é como um após-guerra. É o pó que finalmente assenta no chão, são as marcas que ficam de mais um doloroso dia, é o cheiro de cansaço que paira no ar, é a derrota de tantos nesta cidade de tudo, é a vitória daquele vendedor que, finalmente, conseguiu vender a sua máscara de pau preto e que ,finalmente, pode comer, é o “baixar braços”, é o não ter mais forças, é o ganhar forças novamente, é o silêncio absoluto, é a calma, é a serenidade. A noite de África é como um após-guerra.

São 6 da manhã. Ainda pouco amanheceu e já posso ouvir o barulho da azafama típica de Maputo na rua. Mas de leve, bem de leve. Os moçambicanos acordam cedo, aqui às 5 da tarde já é de noite, daí que tenham que fazer render o seu dia. Ainda não me habituei a este horário, é duro, não acordara antes, repetitivamente, as 6 da manha. É duro.

Ontem foi o meu verdadeiro impacto com a escola MAcheken khovo. Fiquei com a turma do 2º ano B e com a falta de experiencia que tenho mas com todo o esforço e dedicação, dei no espaço de 4 horas a disciplina de matemática: ensinei as horas. O meu relógio ficara mal feito no quadro, estava torto e não havia apagador. “Não faz mal”- dizia a professora. Realmente, não fazia mal. Depois de uns olhos e uma boca acrescentada ao meu torto relógio, passamos a chama-lo de “Sebastião” e, finalmente, o relógio Sebastião conseguiu ensinar, pelo menos algumas, as horas a algumas crianças daquela turma.
Enquanto o relógio Sebastião brincava com as crianças e entrava na compreensão destas, olhei para o fundo da sala. Numa cidade assim as pessoas albinas destacam-se com mais facilidade. Era o Sipriano. Um miúdo de 7 anos, pequenino, constantemente a tremer que olhava para mim com aqueles olhos grandes que pareciam desaparecer na sua bela brancura. Cheguei-me a ele com todo o cuidado. A professora continuara a aula sem mim na corda bamba que é a frente da sala de aula e eu, sorrateiramente, sentei-me na secretaria do Sipriano. O meu primeiro contacto com esta criança tão especial foi difícil. Perguntei-lhe se tinha percebido a matéria, se já sabia as horas, se estava a gostar da aula. Não obtive qualquer resposta às minhas tentativas, claramente falhadas, de comunicação. Foi então que olhei para o caderno. O caderno, tão raro nas crianças que se encontram naquela escola, estava repleto de círculos mal elaborados. Olhei para ele e perguntei: “_ o que é isto?” Sorri e respondeu “_ Bolas.” E recomeçou aquele gesto repetitivo que eu não compreendia. Só parou quando encheu toda a folha. Foi então que virei as páginas do caderno e todas elas, em vez de matéria, letras, números, desenhos, estava repletas de “Bolinhas” como ele dizia. Olhei para o Sipriano e para o seu estremecer. Parei. Que estava aquela criança ali a fazer? Porque nunca tinha sido puxada para a matéria? Porque não percebia eu nada do que ele dizia? Porque é que no intervalo insistia em estar sozinha? Porque é que parecia ter um mundo só seu?
Percebi então. O Sipriano era uma criança tão perfeita e autista. Tinha o seu mundo no qual nem eu, nem ninguém tinha conseguido entrar. O autismo é uma doença pouco entendida em qualquer parte do mundo, mas a forma como aqui em Maputo, naquela escola é ignorada e tratada como “burrice” tal como a professora Isaura me disse: “_ Ah… Ele é burro. Não se preocupe com ele. Trate antes dos outros.”
Impressionou-me. Quis explicar aquela professora que não se tratava de “burrice” como ela dizia. Como lhe explicaria? Não consegui, tentei mas a falta de entendimento da outra parte, a minha pouca informação, admito sobre esta doença, a preferência pelo facilitismo prevaleceu. O Sipriano continua a ser uma pessoa incompreendida no meio deste mundo que também não se esforça para o compreender.

Apesar de tudo nas suas bolinhas os Sipriano conseguiu meter-me não a chorar compulsivamente naquela sala de aula, apenas porque me contive. Na sua naturalidade típica e sincera disse-me que aquelas bolinhas estranhas, desajeitadas e estreitas queriam dizer: Gosto de ti. No primeiro dia criei, sem dúvida, uma ligação, no mínimo, amorosa com o Sipriano.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

A diferença, acreditem, está a começar a fazer-me bem.

Desengane-se quem me diz que a diferença não é uma experiencia enriquecedora.
A diferença é o choque de identidades.
A diferença é o repensar na nossa maneira de ser.
A diferença é ver o mesmo por outros olhos.
A diferença é perceber outros mundos.
A diferença é mudarmo-nos sem nos apercebermos.
A diferença é mudar algo nos outros.
A diferença é dar sem notar e receber sem dar por isso.
A diferença é o que vivo nos últimos dois dias.




Ainda tenho a minha cabeça muito quente. Ainda não vejo direito. Ainda não percebo tantas coisas. De facto, Maputo é uma cidade que merece tanto do meu tempo. Ainda chegamos à pouco e já me sinto presa a este sitio. Ainda chegamos à pouco e quando cheguei à escola primária Maxaquene Khovo rendi-me aos sorrisos rasgados que marcavam as caras daquelas crianças. No meio de tanta agitação, crianças corriam, brincavam, sorriam, cantavam. Era uma bonita imagem acreditem.
Fiquei com a turma de 2º ano. É um grupo irreverente, alegre, repleto de energia, igualitário de uma forma que me impressionou, do qual, segundo a professora Seferina eu sou a “titia”. Ainda é muito cedo, mas tenho a certeza que adorarei aquelas crianças, e como “titia” que sou comecerei, já amanha, a dar o meu melhor por eles.


Os primeiros minutos, horas, dias, são sempre alturas muito intensas. Tenho absorvido tudo o que posso, tenho sugado todas as energias que consigo. No entanto, não posso sair do meu lugar sem me custar. A despedida foi dolorosa. Jamais saí tanto tempo de perto das pessoas que amo. Custou. É a minha família, o meu apoio, a minha base, a minha força.
Sem se aperceberem aquela viagem de carro com rumo a Lisboa foi das viagens mais propícias para sensações fortes que alguma vez senti, muito fortes. Olhava à minha volta. Partilhava o meu carro com mais quatro pessoas. Como não sabem eles que são tudo na minha vida. Nos lugares da frente tinha os meus pais. Tenho tanto que lhes agradecer. O apoio, o orgulho, a dedicação, a força, os avisos, tanto. Tinha o meu pai que sempre, sempre, será o meu modelo a seguir, a pessoa que endireita a minha linha quando esta está torta, aquele que marca as pegadas que vou querer seguir. Tinha a minha mãe, a mulher mais forte que conheço. É de uma força imaginável, é de um valentia que me orgulha. Aguenta tudo, é impressionante. A ela devo muito, desde o apoio numa decisão difícil aos medicamentos que meticulosamente arranjou numa malinha. É a minha mãe. A mulher mais perfeita à face da terra.
Aos meus lados, os meus irmãos. Eles talvez não o sintam, mas tenho uma enorme ligação com eles. Por muito que discuta, me chateei, lhes tire roupa, lhes desligue o telemóvel na cara, mesmo assim, fujo para eles quando alguma coisa me corre mal. São a construção da minha “bolha actimel” quando preciso de protecção. Sei que sim. E a minha irmã, Joana, sabes que sim, sabes que és uma grande mulher, sabes que és mais forte que tudo, e sabes que te amo mais do que tudo. Eu sei, tu sabes.

As lágrimas já estão me escorrem um pouco do canto do olho. Tinha que lhes escrever isto, sei que são a quem custa mais a minha distância. Não se preocupem. Estão sempre comigo. É uma distância puramente física. A força que nos une é demasiadamente grande e antes de agir penso duas ou três vezes em como vocês o fariam. São a minha vida.



Fico por aqui. A diferença, acreditem, está a começar a fazer-me bem.



p.s. Parabéns pai, meu herói.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Falta 1 dia!

Falta 1 dia!


“O voluntariado, mais do que as actividades altamente intelectuais, diferenciam o homem dos animais mais próximos dele.”

lev vygotsky

Não queremos ser intelectuais. Não queremos ser reconhecidos como altamente intelectuais. Não queremos ser diferenciados. Não queremos esta forma de prestígio.

Somos o Pumap 2009. Somos um grupo de jovens irreverente, diversificado, distinto, característico, divertido, e no mínimo, sonhador. Somos apenas seis raparigas e cinco rapazes que estudantes, não procuram esta noção altiva em que se vê o voluntariado.

Desçamos à terra. Somos jovens estudantes, que optamos por não passar as nossas férias de verão numa praia qualquer ou num festival de verão. Desçamos à terra. Quisemos, no meu ponto de vista, não menos, mas muito mais que isso. Ambiciosos como somos apostámos num projecto distinto de tudo o que fizemos até hoje. Acreditamos, genuinamente, que ganharemos muito mais num país distante, em circunstâncias em que nunca nos encontramos, numa casa com 12 pessoas durante dois meses, pondo-nos à prova constantemente, numa cultura forte, numa cidade de lutadores, numa aprendizagem constante de como se é feliz com tão pouco.

Sim, somos jovens, mas acreditamos na mudança, na nossa mudança. Acreditamos, sendo optimistas ou realistas, que deixaremos a nossa pegada naquele país, que marcaremos certas pessoas, que cresceremos muito mais do que imaginamos, que superaremos mais do que achamos possível, que ultrapassaremos a linha do possível, que nos esforçaremos para dar o nosso melhor, que estaremos lá de braços abertos para o que vier.

Somos jovens, sim, mas jovens que partem para um país do nada, vindo de um país do tudo, prontos para dar o nosso tudo. Somos jovens, sim, mas mudaremos, de alguma forma o mundo.

Já sinto o frio na barriga. Vocês não?

“O voluntariado não é dar sem receber, desengane-se quem o diz. É dar, não o que nos sobra, mas tudo o que temos, recebendo, verdadeiramente, muito mais do que conseguimos dar.”

Pumap 2009

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Testemunho

_ Então mas e qual é o teu objectivo de vida? – o caminho que aquela conversa, que nada de típico tinha num final de uma tarde de Setembro era, no mínimo, surpreendente.
_ Mudar o mundo. – Parei. Nunca teria adivinhado aquela resposta. O objectivo dele era mudar o mundo. Todos queremos mudar o mundo, é verdade. Mas responder assim, apanhou desprevenida.
_ Mudar o mundo? – Pareceu-me uma resposta vaga, afinal de contas, de quantas formas podemos mudar o Mundo?
_ Sim, fazer um grande feito, um feito que faça todos um dia lembrarem-se de mim. – Interroguei-me sobre aquela resposta e acabei por ter uma vontade enorme de o interrogar. Afinal não queria ele mudar o mundo, mas sim ser inesquecível, inesquecível como só eu hoje sei, meu grande amigo.
_ Para mudar o mundo não precisas de fazer um grande feito. – Disse eu com aquela minha cara de verdade absoluta que ninguém me tira. Julgo-me quase sempre detentora da verdade, pelo menos da minha verdade.
_ Claro que precisas. – Bem, começara a primeira discussão entre dois grandes casmurros e aqui não lhe dei ponto, não podia ser. Como teimosa, persistente, nortenha, estudante de direito e casmurra que sou tinha de expor completamente a minha ideia. Não sairia daquele passeio sem o convencer da minha perspectiva de vida.
_ Mudando a vida de uma pessoa mudas o mundo. - Concluí eu, simplesmente, naquela tarde ainda quente com inícios visíveis de Outono o objectivo de toda a minha existência.

Esta frase é a razão porque hoje estou aqui.

Acredito, genuinamente, que mudo assim o Mundo, o meu mundo e o mundo de outra pessoa, agarrando-me à certeza de não ser esquecida desta forma.
Para quê realizar grandes feitos se poderei ser o grande feito para uma pessoa? Na minha cabeça, na minha perspectiva, na minha vida, encho a minha vulgar existência apenas assim.
Encontrei no Pumap, a base para a concretização. Encontrei nos olhos dos antigos pumadores o brilho quando falam desta experiência que um quererei ter. Encontrei naquelas pessoas uma família que acredita neste projecto tanto quanto eu. Encontrei depois da primeira selecção o meu primeiro grande desafio. Encontrei a partir daí uma superação constante a mim mesma. Encontrei naquelas reuniões uma “eu” que desconhecia. Encontrei naqueles cafés antes das reuniões grandes pessoas. Encontrei nos Bairros crianças que me ficaram para toda a vida no coração. Encontrei em cada lembrança me dada lá a satisfação do esforço que faço. Encontrei naquele email a avisar que tinha sido seleccionada definitivamente um projecto, o meu primeiro pequeno e verdadeiro projecto. Encontrei em todas as actividades que fazemos algo que saí das minhas próprias mãos. Encontrei no cansaço de cada reunião uma satisfação. Encontrei em cada discussão uma beleza nos outros. Encontrei em cada obstáculo mais força. Encontrei naquele grupo irreverência. Encontrei num simples projecto de papel uma realidade que levanto todos os dias com a minha força, eu e mais onze pessoas magnificas. Encontrei na minha ida a 1 de Julho uma enorme vontade e um frio na barriga. Encontrarei naquelas horas de voo a certeza do que faço. Encontrarei naquele povo a mudança da minha vida. Encontrarei no sorriso daquelas crianças uma forma de enfrentar o mundo. Encontrarei naqueles dois meses uma Ana que superará mais do que pensou que conseguiria. Encontrarei naquela escola uma razão para justificar a minha existência: tentar dar um futuro idolatrado a criança com futuro perdido. Encontrarei naquela casa mais do que amigos, uma família. Encontrarei naquela cor uma pureza maior que a minha. Encontrarei naqueles olhares uma energia que vou querer sugar para toda a vida. Encontrarei naquele ar húmido uma nova forma de caminhar. Encontrarei naquela realidade uma nova verdade. Encontrarei em cada pôr-do-sol uma boa razão para viver mais um dia. Encontrarei naquela terra a minha própria mudança do Mundo.

_ Mudando a vida de uma pessoa, mudas o mundo.

Acredito friamente nisto, sonho com isto. E acreditando que somos do tecido de que são feitos os nossos sonhos, eu sou a Ana, uma rapariga de 20 anos quase feitos, uma pequena leitora de livros, uma simples constante ouvinte de música, uma habitante deslocada, uma teimosa por natureza, uma fala-barato e uma “sem papas na língua” sem remédio, uma sonhadora insistente, uma forte crente nas suas ideias, uma detestável maníaca de ter sempre a razão e de a provar a todos, uma sorridente por natureza, uma irremediável devoradora de chocolate, uma vulgar estudante nortenha de direito que sendo do tecido desta apaixonante iniciativa, ingenuamente ou não, acredita que nos meses de Julho e Agosto irá mudar o mundo.