quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Sipriano

A noite de África é como um após-guerra. É o pó que finalmente assenta no chão, são as marcas que ficam de mais um doloroso dia, é o cheiro de cansaço que paira no ar, é a derrota de tantos nesta cidade de tudo, é a vitória daquele vendedor que, finalmente, conseguiu vender a sua máscara de pau preto e que ,finalmente, pode comer, é o “baixar braços”, é o não ter mais forças, é o ganhar forças novamente, é o silêncio absoluto, é a calma, é a serenidade. A noite de África é como um após-guerra.

São 6 da manhã. Ainda pouco amanheceu e já posso ouvir o barulho da azafama típica de Maputo na rua. Mas de leve, bem de leve. Os moçambicanos acordam cedo, aqui às 5 da tarde já é de noite, daí que tenham que fazer render o seu dia. Ainda não me habituei a este horário, é duro, não acordara antes, repetitivamente, as 6 da manha. É duro.

Ontem foi o meu verdadeiro impacto com a escola MAcheken khovo. Fiquei com a turma do 2º ano B e com a falta de experiencia que tenho mas com todo o esforço e dedicação, dei no espaço de 4 horas a disciplina de matemática: ensinei as horas. O meu relógio ficara mal feito no quadro, estava torto e não havia apagador. “Não faz mal”- dizia a professora. Realmente, não fazia mal. Depois de uns olhos e uma boca acrescentada ao meu torto relógio, passamos a chama-lo de “Sebastião” e, finalmente, o relógio Sebastião conseguiu ensinar, pelo menos algumas, as horas a algumas crianças daquela turma.
Enquanto o relógio Sebastião brincava com as crianças e entrava na compreensão destas, olhei para o fundo da sala. Numa cidade assim as pessoas albinas destacam-se com mais facilidade. Era o Sipriano. Um miúdo de 7 anos, pequenino, constantemente a tremer que olhava para mim com aqueles olhos grandes que pareciam desaparecer na sua bela brancura. Cheguei-me a ele com todo o cuidado. A professora continuara a aula sem mim na corda bamba que é a frente da sala de aula e eu, sorrateiramente, sentei-me na secretaria do Sipriano. O meu primeiro contacto com esta criança tão especial foi difícil. Perguntei-lhe se tinha percebido a matéria, se já sabia as horas, se estava a gostar da aula. Não obtive qualquer resposta às minhas tentativas, claramente falhadas, de comunicação. Foi então que olhei para o caderno. O caderno, tão raro nas crianças que se encontram naquela escola, estava repleto de círculos mal elaborados. Olhei para ele e perguntei: “_ o que é isto?” Sorri e respondeu “_ Bolas.” E recomeçou aquele gesto repetitivo que eu não compreendia. Só parou quando encheu toda a folha. Foi então que virei as páginas do caderno e todas elas, em vez de matéria, letras, números, desenhos, estava repletas de “Bolinhas” como ele dizia. Olhei para o Sipriano e para o seu estremecer. Parei. Que estava aquela criança ali a fazer? Porque nunca tinha sido puxada para a matéria? Porque não percebia eu nada do que ele dizia? Porque é que no intervalo insistia em estar sozinha? Porque é que parecia ter um mundo só seu?
Percebi então. O Sipriano era uma criança tão perfeita e autista. Tinha o seu mundo no qual nem eu, nem ninguém tinha conseguido entrar. O autismo é uma doença pouco entendida em qualquer parte do mundo, mas a forma como aqui em Maputo, naquela escola é ignorada e tratada como “burrice” tal como a professora Isaura me disse: “_ Ah… Ele é burro. Não se preocupe com ele. Trate antes dos outros.”
Impressionou-me. Quis explicar aquela professora que não se tratava de “burrice” como ela dizia. Como lhe explicaria? Não consegui, tentei mas a falta de entendimento da outra parte, a minha pouca informação, admito sobre esta doença, a preferência pelo facilitismo prevaleceu. O Sipriano continua a ser uma pessoa incompreendida no meio deste mundo que também não se esforça para o compreender.

Apesar de tudo nas suas bolinhas os Sipriano conseguiu meter-me não a chorar compulsivamente naquela sala de aula, apenas porque me contive. Na sua naturalidade típica e sincera disse-me que aquelas bolinhas estranhas, desajeitadas e estreitas queriam dizer: Gosto de ti. No primeiro dia criei, sem dúvida, uma ligação, no mínimo, amorosa com o Sipriano.

2 comentários:

  1. Olá Ana!

    Acabei de ler que já começou a dar aulas aos seus primeiros alunos. Aqui, em Lisboa, a esta distância toda, consegui imaginar-me num canto da sala a vê-la sentar-se ao lado do Sipriano. Os albinos são frequentemente excluídos em África (até aqui...) e o desafio mais duro para um professor é conseguir tornar um "burro", como a sua colega considera o seu novo protegido, num aluno interessado e com aproveitamento escolar.
    Uma vez que está a ensaiar ser professora, não resisto a contar-lhe uma história que se passou comigo quando deixei a escola primária e entrei no ciclo preparatório. Foi uma mudança enorme, pois passei de ter apenas uma professora, que davas as lições sempre na mesma sala e num ritmo que não nos fazia sentir a divisão das matérias, para um modelo bem diverso, com cada matéria a ser ensinada por um professor diferente, por vezes até numa sala diferente. No primeiro dia de aulas, o meu Pai passou-me uma coisa nova: o horário! Lá, tinha abreviado pela primeira letra as disciplinas que ia aprender, mas ao explicar-me isso deu conta que abreviou simplesmente por M três disciplinas diferentes. Lembro-me de encolher os ombros e dizer-me que umas são as aulas de Música, outras as de Moral e outras ainda as de Matemática, acrescentando que "há medida que fores tendo as aulas logo perceberás o que significa cada um destes M". Olhei então para o papel e fiquei assustado. A primeira aula era um desses M. Quando chegou o momento, fiquei impressionado com a má educação dos outros alunos, pois só eu é que esperei à porta que o professor entrasse. Era assim que eu estava habituado, mas ninguém me disse que essa regra ali não se aplicava, mas sim o inverso. Quando vou a entrar atrás do professor, ele tenta fechar-me a porta na cara e ao olhar-me, com ar meio zangado, só me ocorreu uma coisa: perguntar-lhe se era uma aula de Música, de Moral ou de Matemática. Bem, na verdade não cheguei a dizer a palavra Matemática, porque nessa altura já me tinha empurrado para a rua enquanto dizia "Vai dar música lá para fora". Sem saber como, fui o protagonista da primeira falta disciplinar do ano lectivo e logo na segunda aula de Matemática o professor obrigou-me a sentar no fim da sala, ao lado de adolescentes com um expediente que eu não tinha, nomeadamente por serem bem mais velhos, com vários chumbos no currículo, e já pensarem e fazerem coisas que eu nem imaginava. Felizmente, consegui apenas aprender a lidar com eles para não ser massacrado sem, todavia, ter-me tornado num deles. Mas ganhei uma aversão tal a Matemática que toda a minha vida se decidiu em função disso. Adeus pilotar aviões. Venha lá a escrita. Hoje, passo a vida a andar de avião, mas como passageiro. E vivo de escrever. Muito. Adoro, mas sei que se tivesse aprendido Matemática há muito que teria tido coragem de tentar tirar o curso de piloto de aviões...

    Um beijo,

    Alexandre Correia

    PS - A história não acaba aqui. Quem sabe se lhe conto o resto um destes dias?

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  2. Olá ana! Hoje soube da existência do teu blog e do teu menino autista. Deixo-te o meu mail para se precisares de ajuda em alguma coisa para ajudares o Sipriano.
    saweza@msn.com

    Beijinhos e parabens pelo teu trabalho,

    Raquel

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